7.2.11

MEMORIAS GARRAFAIS

Sou, orgulhosamente, brasileiro e paulistano, mas minha descendência ajudou a forjar minha personalidade. Sou neto de sírios por parte de pai e meu avo, por parte de mãe era italiano, melhor ainda, napolitano. A nacionalidade da minha avó materna, que não cheguei a conhecer, era russa e foi criada desde muito pequena na França. Assim sendo, sou uma salada internacional em se tratando de formação sanguínea. Vai daí que a minha característica artística deve ter vindo da parte italiana, e a minha queda comercial da parte síria. Todo esse preâmbulo eu fiz para iniciar o relato desta minha memória. Os anos eram os primeiros da década de 50, eu morava, como muitos já sabem, na Rua Augusta 291. Já contei também que a casa era antiga, de pé direito muito alto e agora acrescento uma informação, ela tinha um porão com mais de um metro de altura, utilizado para guardar tranqueiras, coisas obsoletas, livros antigos, garrafas e litros vazios que eram bastante importantes naquela época. O porão ocupava a totalidade da área construída e na sua parte fronteira, tinha pequenas janelas resguardadas por grades de ferro e ficavam a pouco mais de 30 centímetros do piso da calçada fronteiriça. Nos primeiros compartimentos desse porão, eu, meu irmão e meu primo, havíamos delimitado o nosso reino de fantasia. Ali brincávamos, guardávamos nossos poucos brinquedos oficiais e os muitos brinquedos de faz-de-conta que construíamos. Como um verdadeiro Rei, por ser o mais velho, eu não permitia aos demais componentes daquele reino a ultrapassagem para as demais dependências daquele escuro porão. Para lá só um verdadeiro e heróico rei poderia fazer incursões e eu as fazia e, nessas minhas explorações eu dava vazão não só ao meu espírito aventureiro, mas, também, ao meu espírito de comerciante. No meio desse porão ficava o deposito de garrafas e litros vazios av. A mim cabia, então, a importante tarefa de transportar essas preciosidades até as janelinhas frontais do porão e, depois, na primeira oportunidade, já na calçada, resgatá-las com cuidado, e oferecê-las no empório que ficava na esquina da Rua Caio Prado com a Rua Augusta, para o “seu José”, proprietário do estabelecimento, que as comprava de muito bom grado. As verbas obtidas nessas transações eram aplicadas em doces, sorvetes e ingressos nas matinês do Cine Odeon para assistir aos seriados de Dick Tracy, O Cobra, e os filmes de Esther Willians, Doris Day, Fred Astaire e muitas outras celebridades. Essas aventuras financeiras duraram muito tempo, eu até pensava que elas não teriam mais fim. Um dia, sem mais nem menos, minha fonte de rendas foi descoberta. As garrafas já em fase terminal assustaram minha mãe, minha tia e meu avô. A falta das garrafas já transacionadas promoveu uma grande surra neste que lhes escreve e, como castigo, um mês sem cinema e guloseimas. Hoje, ao me lembrar do caso tenho mais convicta ainda, certeza de que não tive a mínima culpa em toda a estória, a culpa é devida, totalmente à minha descendência oriental.